quarta-feira, 6 de junho de 2012

Drogas: duas faces da liberação do consumo

Fonte: O Globo

Por Arnaldo Bloch

Li com grande interesse cívico, no início da semana, que a comissão de juristas encarregada do anteprojeto para alterações no Código Penal aprovou proposta
que descriminaliza o uso de drogas. O texto, apesar de bastante evoluído, deixou-me com meia dúzia de paranoias (note bem: não oriundas de consumo de entorpecentes).

Paranoias moderadas, pulgas atrás da orelha, grilos falantes nos ouvidos de um
hippie-velho que é a favor do projeto mas não renunciou, nem renunciará, jamais, ao que lhe restou de apreço à razão nem à sua ração diária de lucidez.

1 — Pelo projeto, o usuário poderá transportar ou trazer consigo uma quantidade suficiente para cinco dias de consumo sem que isso configure crime ou contravenção. Qual a quantidade para cinco dias de consumo de um junkie, de um fumante social recreativo ou de um partidário do “tapinha não dói”? Isso pode variar, sei lá, de 1g a uns 30g ou mais, se uso pessoal puder ser entendido como uso familiar, caso o casal seja adepto de um chá verde. Para decidir esses subjetivos enquadramentos contaremos com o senhor Juiz, com toda sua carga de idiossincrasias, preconceitos, preferências ou traumas pessoais. Imaginem o grau kafkiano de incerteza no tribunal.

2 — Será permitido o plantio caseiro, desde que não destinado à venda. Em primeiro lugar, quem garante que não será destinado à venda? Qual o tamanho máximo da estufa? Ou cada cidadão terá o seu vasinho de barro?  Quem vai ensinar os que desejam rumar para esse modelo de autossustentabilidade as melhores técnicas para garantir uma safra de boa qualidade, ou, ao menos, uma erva adequada e imune a pragas tóxicas?  E, considerando que o projeto trata de drogas em geral, o cultivo de coca e o processamento de pasta também estará contemplado? E o da papoula?

3 — Tirar do contingente prisional ou da linha de mira do crime centenas de milhares de pessoas que só desejam consumir maconha, assim como outros (ou os mesmos...) “usuários” desejosos de cerveja e de uísque com energético é muito interessante, bem como o intuito de tratar a questão da dependência como problema de saúde pública (que, na prática, já é). Isso tudo já é a tendência mundial mesmo.  Mas a relação muitas vezes involuntária desses usuários com o tráfico se mantém intocada. Ninguém acredita que cada cidadão vai ter sua horta caseira. O que, aliás, deverá deixar tentados os plantadores mais competentes e
empreendedores a passarem para o comércio informal e cair na esfera do...tráfico.

4 — Ou seja, o cerne da questão não está sendo, nem de longe, contemplado: ninguém quer saber de conversar sobre o fim da proibição ao plantio, ao fabrico, à distribuição e à venda em farmácias ou pontos de comércio, com respectivos controle, arrecadação, estatística e campanhas, vertidos na prevenção, na polícia e, quem sabe, sobrando um trocado até para a luta contra as milícias, essa coisinha sem importância.  A utopia da erradicação do tráfico mantendo- se o ouro na mão do bandido se mantém a guiar os passos do pensamento vigente, estimulando a violência, o confronto, a militarização.   O argumento de que um fim ao embargo provocasse mais assaltos e sequestros é um clássico engana-trouxa: polícia serve, fundamentalmente, para prender ladrões, sequestradores, agressores, assassinos e corruptos. A diferença é que, com reserva de mercado de substâncias tão almejadas, eles ficam mais poderosos e bem armados.

  5 — Quem financia o tráfico é a proibição. A Lei Seca americana, nos anos 1920, ao proibir o consumo de álcool, armou uma poderosa rede de gângsteres. A posterior liberação baixou o consumo e zerou o tráfico.   Não discutir o fim da proibição e, ao mesmo tempo, liberar o consumo é um avanço de um lado e um retrocesso do outro, uma vez que o combate direto ao tráfico é uma guerra sem fim. Isso dá força aos que citam a relação estatística direta entre homicídios e drogas a pôr no mesmo saco usuários e traficantes e seus argumentos falaciosos
contra a discussão em curso.

  6 — O texto inclui medicamentos, essas balinhas de êxtases e de sonos tão diversos vendidas licitamente e receitadas por psiquiatras muy amigos. No caso, quem lucra nem são os traficantes, mas a indústria farmacêutica. Em passando as alterações pelo Congresso, queria ver, na prevenção de uso abusivo de remédios, o mesmo esforço que já existe, com sucesso, no combate ao fumo de tabaco e ao consumo excessivo de álcool, ao menos no trânsito.

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